Até hoje sou “perguntadeira”. Alguns momentos mais, outros menos, mas perguntar sempre fez parte de minha maneira de ser. Nada mais natural do que me identificar com autores/textos/situações em que o perguntar ou as perguntas tenham destaque. Alice com sua “perguntação” me encanta até hoje; como me identifiquei com a maiêutica de Sócrates (com algumas ressalvas…); as perguntas de meus pequenos alunos, embora às vezes me desarmassem, tornavam meu trabalho uma diversão. Até que fui trabalhar com jovens cheios de energia e potencial, e as perguntas ficaram escassas. O que tinha acontecido? As tentativas que fiz para entender e mudar a situação, dão histórias para muitos posts… Então, conheci este texto – trecho de um livro – com o qual estou iniciando as postagens. O autor tinha ouvido minha pergunta? Não parei de ler e comecei a levar para meus alunos, estimulando a reflexão. Se resolvi a questão? Sei que não, mas como sempre confiei no potencial dos alunos, acredito que muitas reflexões foram feitas. A despeito de ter sido escrito no século passado, continua sendo uma reflexão que vale ser feita por pais, mães, cuidadores e professores de todos os níveis. Eu continuo lendo e a cada leitura me convenço de que as perguntas são um caminho para estimular aprendizagens mais significativas.

Não existem perguntas imbecis

“Na África Oriental, nos registros das pedras que datam de uns 2 milhões de anos atrás, pode-se encontrar uma sequência de ferramentas trabalhadas que os nossos ancestrais projetaram e executaram. As suas vidas dependiam da manufatura e do emprego e da manufatura dessas ferramentas. Eram, é claro, a tecnologia da Idade da Pedra Lascada. Com o tempo, pedras especialmente moldadas foram usadas para apunhalar, picar, lascar, cortar, esculpir. Embora haja muitas maneiras de fabricar ferramentas de pedra, o extraordinário é que, em determinada região, durante longos intervalos de tempo, elas foram feitas da mesma maneira – o que significa que instituições educacionais devem ter existido há centenas de milhares de anos, mesmo que fossem basicamente um sistema de aprendizado. Embora seja fácil exagerar as semelhanças, é também fácil imaginar o equivalente de professores e estudantes vestidos com tangas, cursos de laboratório, exames, reprovações, cerimônias de formatura e pós-graduação.

Quando o treinamento se mantém inalterado por longos períodos, as tradições são transmitidas inatas para a próxima geração. Mas quando o que precisa ser aprendido muda com rapidez, especialmente no curso de uma única geração, torna-se muito mais difícil saber o que ensinar e como ensiná-lo. Então os estudantes se queixam da relevância; diminui o respeito pelos mais velhos. Os professores se desesperam ao constatar como os padrões educacionais se deterioraram e como os estudantes se tornaram apáticos. Num mundo em transição, tanto os estudantes como os professores precisam ensinar a si mesmos uma habilidade essencial – precisam aprender a aprender.

À exceção das crianças (que não sabem o suficiente para deixar de fazer as perguntas importantes), poucos de nós passam muito tempo pensando por que a Natureza é como é; de onde veio o Cosmos, ou se ele sempre existiu; se o tempo vai um dia voltar atrás, e os efeitos vão preceder as causas; ou se há limites elementares para que o que os humanos podem conhecer. Há até crianças, e eu conheci algumas delas, que desejam saber como é um buraco negro; qual é o menor pedaço da matéria; por que nos lembramos do passado, mas não do futuro; e por que há um Universo.

De vez em quando, tenho a sorte de lecionar num jardim-de-infância ou numa classe do primeiro ano primário. Muitas dessas crianças são cientistas natos – embora tenham mais desenvolvido o lado da admiração que o do ceticismo. São curiosas, intelectualmente vigorosas. Perguntas provocadoras e perspicazes saem delas aos borbotões. Demonstram enorme entusiasmo. Sempre recebo uma série de perguntas encadeadas. Elas nunca ouviram falar da noção de ‘perguntas imbecis’.

Mas quando falo a estudantes do último ano do secundário, encontro algo diferente. Eles memorizam os ‘fatos’. Porém, de modo geral, a alegria da descoberta, a vida por trás desses fatos, se extinguiu em suas mentes. Perderam grande parte da admiração e ganharam muito pouco ceticismo. Ficam preocupados com a possibilidade de fazer perguntas ‘imbecis’; estão dispostos a aceitar respostas inadequadas; não fazem perguntas encadeadas; a sala fica inundada de olhares de esguelha para verificar, a cada segundo, se eles têm a aprovação de seus pares. Vêm para a aula com as perguntas escritas em pedaços de papel que sub-repticiamente examinam, esperando a sua vez, e sem prestar atenção à discussão em que seus colegas estão envolvidos naquele momento.

Algo aconteceu entre o primeiro ano primário e o último ano secundário, e não foi apenas a puberdade. Eu diria que é, em parte, a pressão dos pares para não se sobressair (exceto nos esportes); em parte, o fato de a sociedade ensinar gratificações a curto prazo; em parte, a impressão de que a ciência e a matemática não vão dar a ninguém um carro esporte; em parte, que tão pouco seja esperado dos estudantes; e, em parte, que haja poucas recompensas ou modelos de papéis para uma discussão inteligente sobre ciência e tecnologia – ou até para o aprendizado em si mesmo. Os poucos que continuam interessados são difamados como nerds, CDF’s, dentre outros.

Mas há outra coisa: conheço muitos adultos que ficam desconcertados quando as crianças pequenas fazem perguntas científicas. Por que a Lua é redonda?, perguntam as crianças. Por que a grama é verde? O que é um sonho? Até onde se pode cavar um buraco? Quando é o aniversário do mundo? Por que nós temos dedos nos pés? Muitos professores e pais respondem com irritação ou zombaria, ou mudam rapidamente de assunto: ‘Como é que você queria que a Lua fosse, quadrada?’. As crianças logo reconhecem que de alguma forma esse tipo de pergunta incomoda os adultos. Novas experiências semelhantes, e mais uma criança perde o interesse pela ciência. Por que os adultos têm de fingir onisciência diante de crianças de seis anos é algo que nunca vou compreender. O que há de errado em admitir que não sabemos alguma coisa? A nossa autoestima é assim tão frágil?

Além do mais, muitas dessas perguntas se referem a problemas profundos da ciência, alguns dos quais ainda não estão plenamente resolvidos. A razão para a Lua ser redonda tem a ver com o fato de a gravidade ser uma força central que puxa para o meio de qualquer mundo, e com o grau de resistência das rochas. A grama é verde por causa da clorofila, é claro – todos nós tivemos essa informação martelada em nossas cabeças na escola secundária -, mas por que as plantas têm clorofila? Parece tolice, uma vez que o Sol produz sua energia máxima na parte amarela e não verde do espectro. Por que as plantas, em todo o mundo, deveriam rejeitar a luz solar em seus comprimentos de onda mais abundantes? Talvez seja um acidente consolidado da antiga história da vida sobre a Terra. Mas há algo que ainda não compreendemos sobre a cor da grama.

Há muitas respostas melhores do que fazer a criança sentir que está cometendo um erro social crasso ao propor perguntas profundas. Se temos uma ideia da resposta, podemos tentar explicar. Uma tentativa mesmo incompleta proporciona nova confiança e encorajamento. Se não temos ideia da resposta, podemos procurar na enciclopédia. Se não temos enciclopédia, podemos levar a criança para uma biblioteca. Ou podemos dizer: ‘Não sei a resposta. Talvez ninguém saiba. Quando você crescer, será talvez a primeira pessoa a descobrir tal coisa’.

Há perguntas ingênuas, perguntas enfadonhas, perguntas mal formuladas, perguntas propostas depois de uma inadequada autocrítica. Mas toda pergunta é um grito para compreender o mundo. Não existem perguntas imbecis.

As crianças inteligentes e curiosas são um recurso nacional e mundial. Precisam receber cuidados, ser tratadas com carinho e estimuladas. Mas o mero estímulo não é suficiente. Temos de lhes dar também as ferramentas essenciais com que pensar.

In: SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.

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